quinta-feira, 22 de julho de 2010

Apuro na estrada


Hoje, abro espaço para contar uma passagem das mais insólitas na vida de Damaris Lucena, a mulher mais arretada que conheci.
Essa nordestina, que até hoje, aos oitenta e tantos anos, traz no discurso a força dos Lucena, passou poucas e boas na vida por conta de sua militância, da do marido e do filho mais velho na luta armada que enfrentou a ditadura.
Casada com Raymundo Lucena - o Doutor da Vanguarda Popular Revolucionária - ela viu o marido ser morto na frente dos filhos menores pela polícia de Atibaia. Seu primogênito, Ariston, foi um dos pouquíssimos brasileiros a serem condenados à pena de morte, isto aos dezoito anos de idade.
Banida do país por conta do sequestro dum embaixador, Damaris teve de amargar anos e anos de exílio em Cuba.

Mas, vamos ao caso:

Corre o ano de 1968 e Damaris trafega pela rodovia Fernão Dias numa Rural Willys. Ela e Ariston, de dezessete anos, levam pra Atibaia parte do arsenal da organização guerrilheira de Carlos Lamarca. No porta-malas estão fuzis Fals, granadas, pistolas, metralhadoras e outros petrechos de guerra.
Num trecho da rodovia, a perua cisma de enguiçar.
Do meio da noite surge então uma viatura policial e os guardas se apressam em abordar a mulher parada no acostamento.
- Olá! A senhora está com algum problema?
- O diacho desse carro empacou. Não quer andar mais.
- Mas é muito perigoso a senhora e o garoto ficarem aqui na estrada a essa hora. Esta região tá infestada de terroristas. Vamos passar um rádio agora mesmo prum mecânico vir ajudá-la.
Enquanto esperam o socorro, os policiais apanham na viatura um maço de cartazes e entregam a Damaris:
- Se puder nos ajudar, espalhe estes cartazes lá no bairro onde mora. Aí estão as fotografias dos terroristas mais perigoso do país.
Já prevendo o que vai encontrar, Damaris apanha os papéis e passa o olho:
- De cara, a primeira foto era do Raymundo, meu marido.
Usando de muito sangue frio, a matriarca dos Lucena repassa os cartazes ao filho procurando dourar a pílula de sua farsa:
- Ariston, olhe bem a cara destes sujeitos. São todos bandidos. Se você cruzar com algum deles por aí, não titubeie, ligue imediatamente pra polícia.
Contentes por ganharem mais dois colaboradores na luta contra a esquerda armada, os policiais ficam ali fazendo segurança involuntária ao arsenal da VPR até a chegada do mecânico.
Quando o homem começa a levantar o carro com seu macaco, ele pergunta:
        - O que a senhora carrega aí dentro pra esta perua estar tão pesada?
Engolindo em seco, a mulher responde de pronto.
- São sacos de mantimento, meu filho! Como nós somos pobres, compramos arroz e feijão no atacado lá em São Paulo, que sai mais em conta.
- Ah, ta!
 Terminado o conserto, a viatura ainda escolta mãe e filho até a entrada do bairro onde moram. Sem saber, os policiais chegaram muito perto dum dos aparelhos clandestinos da organização chefiada por Carlos Lamarca.

2 comentários:

  1. Acho estranho o País não falar da ditadura enquanto memória política. Nosso povo sabe mais da história sobre Holocausto, nazismo etc, do que sobre nosso tempo de ditadura e exílios.
    A memória social age como se não tivesse acontecido infinitas barbaridades nesse tempo...
    Tem essa impressão também?

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  2. Pois é.
    E foi por constatar isso que escrevi Pedro e os Lobos. Ali estão todas as ações guerrilheiras do período amarradas a seus contextos.
    Espero ter ajudado, de alguma maneira, a resgatar parte desta memória política.

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